Texto de Michelle Veronese
Em 1945, um pastor encontrou um jarro de cerâmica numa
gruta próxima a sua aldeia no Egito. Ao abri-lo, achou vários livros escritos
em idiomas que ele não compreendia. Algumas folhas amareladas serviram
alimentaram o forno a lenha de sua casa. As restantes caíram nas mãos de um
religioso local, circularam no mercado de antiguidades e foram resgatadas por
um funcionário do governo egípcio. Mais tarde, descobriu-se que a “lenha” era
um tesouro de valor incalculável: a coleção de Nag Hammadi, 13 livros com 1 600
anos e histórias que a Igreja tentou abafar durante todo esse tempo. Mas não
conseguiu. Depois de sobreviver ao tempo e à censura religiosa, o achado
tornou-se o maior e mais importante acervo de evangelhos apócrifos, literatura
que tem ajudado a elucidar vários mistérios sobre as origens do cristianismo.
Tesouro dos primeiros cristãos
A maioria dos escritos de Nag Hammadi foi produzida
entre os séculos 1 e 3 e seus autores faziam parte das primeiras comunidades
cristãs. Nesse acervo, é possível conhecer livros que ficaram de fora do Novo
Testamento, como evangelhos de Tomé e Tiago. O interessante desses relatos é
que destoam bastante do que aparece na Bíblia. Neles, Jesus tem um lado humano,
Madalena é uma grande líder, Deus é um princípio masculino e feminino...
Diferenças polêmicas que deixam claro por que os apócrifos sempre foram uma
pedra no sapato da Igreja. “Eles representavam outro cristianismo, não oficial,
marginalizado”, explica o padre e teólogo Luigi Schiavo, professor do
Departamento de Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás. “Eles
têm grande valor histórico e religioso porque mostram novas interpretações
sobre a figura de Jesus na origem do cristianismo”, enfatiza o especialista.
Naquela época não havia um cânone – nome dado ao
conjunto oficial de livros que compõem a Bíblia – mas vários textos, cada qual
escrito pelas diferentes seitas existentes, que registravam seus próprios
valores e crenças sobre a origem do mundo e da vida, sobre Deus e o messias. E
havia muitas divergências. Os docetas, por exemplo, negavam a realidade
material de Cristo. Consideravam que Jesus possuía um corpo etéreo e que, por
isso, não nasceu nem foi morto na cruz e muito menos ressuscitou. Os ebionitas,
por sua vez, defendiam que Jesus tinha nascido de forma natural e só depois de
batizado é que Deus decidiu adotá-lo. Já os ofitas acreditavam que Caim era o
representante espiritual mais elevado. Para eles, a morte de Jesus foi um crime
do Universo, mas um evento necessário para a salvação da humanidade.
Um dos grupos mais influentes do cristianismo
primitivo foi o dos gnósticos, que adotavam uma vida ascética, negavam a
matéria e acreditavam que o conhecimento era o caminho para a salvação. Algumas
facções também defendiam que Deus possuía um princípio masculino e outro
feminino. De fato, as mulheres desses grupos atuavam como mestras, líderes e
profetisas – uma idéia ainda hoje revolucionária para a Igreja.
E havia também o chamado cristianismo apostólico,
baseado nas narrativas dos primeiros discípulos de Jesus. Eles contavam que o
messias havia morrido na cruz para salvar a humanidade e aos seguidores cabia a
missão de espalhar sua mensagem pelo mundo. Essa tradição começou a ser
registrada por volta dos anos 30 e 40 do século 1, em livros como os evangelhos
de Marcos, Mateus, Lucas e João. Esses textos eram lidos por muitos grupos, que
os consideravam os relatos mais antigos e precisos da vida de Cristo.
A babel de cristianismos resistiu até o século 2,
quando alguns bispos decidiram organizar as Escrituras. “Eles precisavam adotar
um cânon definitivo para que a religião pudesse se expandir”, explica o frei
Jacir. Mas para isso não adiantava traduzir os textos para várias línguas e
divulgá-los entre vários povos. Era preciso aparar as diferenças e chegar a uma
espécie de “versão oficial”. Na hora de selecionar os livros, o espírito democrático
que permitiu a existência das diferentes versões deu lugar às disputas de
poder.
Por uma versão oficial
As igrejas maiores e mais influentes tentaram impor
seus textos, o que as menores não aceitavam. Havia debates e acusações mútuas
de heresia entre elas. A peleja continuou até o século 4, quando tudo indicava
que o cristianismo apostólico iria prevalecer sobre os outros cristianismos.
Seus 4 evangelhos já eram populares naquela época e, desde o século 2, eram
elogiados pelos pensadores da Igreja. Mas faltava tornar esses livros oficiais.
Foi quando o imperador de Roma, Constantino, entrou em
cena e interveio no impasse.
Na época, com o império em crise, ele precisava de
uma bandeira para justificar a expansão e convencer outros povos a aceitarem seu
domínio. E a solução estava numa aliança com os cristãos, que por sua vez
desejavam espalhar a mensagem de Jesus mundo afora. “Constantino percebeu que
era uma grande oportunidade e decidiu fazer do cristianismo a religião oficial
do império”, explica o frei Jacir.
Os cristãos deixaram de ser perseguidos em 313 e
apenas 12 anos depois seus bispos foram convocados para o Concílio de Nicéia,
primeiro passo dado para a criação do Novo Testamento. Na reunião, os
evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João foram escolhidos para narrar a
biografia de Jesus por uma razão simples: expressavam a visão dominante na
Igreja. E todos os demais foram considerados apócrifos, falsos e perigosos para
o estabelecimento do novo livro.
Começou, então, a perseguição a todos que ousavam
discordar da recém-formulada Escritura Sagrada. Os gnósticos, docetas,
ebionitas e ofitas foram acusados de heresia. Os que insistiam em desrespeitar
o cânon eram punidos com a excomunhão ou a morte. Dezenas de livros – ou
centenas, já que ninguém sabe ao certo quantos eram – foram destruídos ou
queimados. Foi nessa época que alguém decidiu esconder 13 volumes numa gruta,
na aldeia de Nag Hammadi, no alto Egito – talvez um cristão perseguido ou um
monge do Mosteiro de São Pacômio, que ficava ali perto. Eram evangelhos, cartas
e atos dos apóstolos escritos em copta, língua falada pelos cristãos do Egito.
O tesouro só foi descoberto 16 séculos depois, por aquele pastor que
apresentamos lá no começo, e hoje está no Museu Copta do Cairo, à disposição do
público.
O legado
Além desses, muitos outros apócrifos foram excluídos
da Bíblia. É o caso dos Manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947, que
apresentam cópias de livros do Antigo Testamento, deixadas pela seita judaica
dos essênios. E do Evangelho Segundo Judas, descoberto na década de 1970, que
conta uma história diferente sobre o discípulo que traiu Jesus. No total, são
mais de 100 livros de valor inquestionável para os estudiosos das Escrituras.
“São documentos essenciais para compreender a história do cristianismo no 1º e
2º séculos”, afirma o teólogo Paulo Nogueira, professor da Universidade
Metodista de São Paulo.
Os apócrifos revelam que o Novo Testamento não nasceu
pronto e acabado e que os textos que servem de base para a atual doutrina cristã
passaram por um complicado processo de “edição”. Também deixam claro que, ao
contrário do que se imaginava, o cristianismo praticado hoje não era o único
nos primeiros séculos. Existiam vários cristianismos, cada um com sua própria
interpretação da vida de Jesus e seus ensinamentos. Quem lê os escritos
deixados por esses grupos pode conhecer outros pontos de vista sobre uma
história contada há mais de 2 mil anos.
No entanto, é necessário afrouxar o julgamento antes
de mergulhar na leitura. “Devemos compreender esses livros de modo ecumênico e
tentando dialogar com os cristianismos de origem”, sugere o frei Jacir. É
verdade que esse textos, muitas vezes coloridos e aberrantes, costumam chocar o
leitor de primeira viagem. “Mas alguns também podem complementar a nossa fé”,
adianta Jacir. Uma prova de que eles não são apenas uma “ameaça” aos cânones da
Igreja Católica estão na religiosidade popular e na arte sacra, que buscaram
inspiração nas histórias apócrifas. A famosa história dos 3 reis magos que
levaram presentes ao menino Jesus e tudo que inspira os presépios natalinos,
por exemplo, vêm dos evangelhos apócrifos.
Magdala, a favorita de Jesus
Apócrifos revelam que Maria despertava o ciúme dos
apóstolos e que Jesus a beijava na boca
Maria Madalena – ou Miriam de Magdala, como está no
hebraico – aparece nos apócrifos como uma mulher sábia e respeitada por Jesus.
Ela acompanha o mestre em suas pregações e o ajuda a liderar os primeiros
cristãos. O Evangelho de Filipe, do século 2, conta que ela era a seguidora
preferida de Cristo, o que despertou o ciúme dos outros apóstolos. “Por que a
amas mais que a todos nós?”, perguntavam eles ao Senhor. Uma passagem que ainda
enfurece muitos cristãos diz que "o Senhor amava Maria mais do que a todos
os discípulos e a beijava freqüentemente na boca". A liderança de Madalena
também é mencionada no evangelho apócrifo que leva seu nome, também do século
2. Numa passagem, Pedro questiona: “Devemos mudar nossos hábitos e escutarmos
todos essa mulher?” O texto revela que, apesar dos preconceitos, ela consegue
se impor. É uma imagem distante da mulher impura e pecadora que a tradição da
Igreja enfatizou durante séculos. Em 1969, o Vaticano reconheceu que houve uma
confusão na interpretação das Escrituras (ela teria sido confundida com a
pecadora que unge os pés de Jesus no Evangelho de Lucas) e retirou a
denominação de prostituta que durante séculos pesou sobre Maria Madalena.
A redenção de Judas
Judas teria entregue Jesus a seu pedido
A história do discípulo que traiu seu mestre por 30
moedas de prata é uma das mais conhecidas do cristianismo. Segundo o Evangelho
de Judas – um manuscrito copta (língua falada pelos antigos egípcios) escrito
entre os séculos 3 e 4 – o apóstolo pode ter sido condenado injustamente pela
história. No texto, descoberto nos anos 70, no Egito, o personagem mais odiado
do cristianismo aparece como o discípulo mais próximo e querido de Jesus. Ele
denuncia o mestre às autoridades romanas a pedido do próprio Messias, num plano
que seria essencial em sua missão de salvar a humanidade. “Nesse contexto, a
figura de Judas representa o ideal do discípulo que, recebida a iluminação,
cumpre a vontade de Deus, mesmo que ela tenha a ver com a entrega de Jesus à
morte”, diz o teólogo Luigi Schiavo. Na versão do Novo Testamento, Judas
enforca-se, arrependido. No texto apócrifo é diferente. Ao compreender a
importância de sua missão, Judas teria se retirado para meditar no deserto.
A infância de Cristo
Evangelhos mostram lado humano e divino
A literatura apócrifa conta várias histórias sobre a
gravidez de Maria e os primeiros anos de vida de Jesus. É uma tentativa de
preencher a lacuna da Bíblia, que faz uma única referência à infância do
Messias, quando ele visita o Templo de Jerusalém, aos 12 anos. O Evangelho do
Pseudo-Mateus, do século 3, conta que o menino fazia milagres ainda na barriga
da mãe e que, desde criança, usava seus poderes para curar doentes e
ressuscitar os mortos. Mas, quando irritado, ele se comportava como uma criança
mimada e vingativa. Certo dia, um menino o derrubou no chão. Jesus então
ordenou: “Caia morto!”, e o amigo morreu. Depois, arrependido, o fez
ressuscitar. Um de seus passatempos preferidos seria criar seres de barro e
lhes dar vida com um sopro. Essa faceta de Jesus pode assustar quem lê os apócrifos.
Mas, para teólogo Jacir de Freitas, ela deve ser compreendida no contexto em
que o livro foi escrito. “A intenção é mostrar que Jesus tem um lado humano e
outro divino, o que é um reflexo de uma época em que a Igreja discutia qual era
a natureza do filho de Deus.”
O quinto evangelho
Historiadores acreditam que Evangelho de Tomé seja
inspiração de 3 dos canônicos
O Evangelho Segundo Tomé, do apóstolo que precisava
“ver para crer”, é o mais polêmico do acervo de Nag Hammadi. O manuscrito
contém 114 parábolas e frases atribuídas a Jesus. As citações são semelhantes
às da Bíblia, mas refletem o pensamento gnóstico. Nele, Jesus aparece como um
mestre mais místico, que orienta os discípulos a reconhecer sua identidade
divina e a buscar Deus em qualquer lugar. Ele foi excluído, apesar de ter sido
escrito por volta dos anos 60 e 70 do século 1, mesma época dos evangelhos que
entraram para o cânone sob a justificativa de serem os relatos mais antigos do
messias. Os pesquisadores chamam esse apócrifo de Quinto Evangelho e suspeitam
que ele seja o famoso Fonte Q, escrito nunca achado que teria sido a base de 3
dos 4 evangelhos canônicos. Se isso for verdade, os textos bíblicos são
adaptações desse apócrifo, dono dos verdadeiros ensinamentos de Cristo.
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